Recentemente eu fiz uma limpa na minha estante, separando vários livros para doação e limitando os não lidos, que estavam se acumulando cada vez mais. Foi um ótimo exercício, e me fez rever as minhas prioridades de leitura. Dentre elas, emergiu Pança de Burro - ao ler a sinopse novamente, me dei conta de que era exatamente o tipo de leitura que eu estava querendo no momento, então fui lá e li.
SINOPSE
“Pança de burro” é um fenômeno meteorológico característico do norte das Canárias: nuvens pesadas e baixas formam uma espessa camada sobre a terra, eventualmente com a presença de neblina. É nesta paisagem plúmbea, no interior de Tenerife, longe do Atlântico e das orlas chiques das ilhas, que se desenrola esta história magnética de amizade entre duas jovens em busca de entender o seu lugar no mundo. De um lado, um vulcão ameaça entrar em erupção e tem saias “como se fosse a Shakira”, os cães são sempre feios e as contradições do machismo e da desigualdade social surgem nas falas de mulheres “religiosas, mas boca suja”: as avós, as mães, as tias. De outro, o despertar da sexualidade, os mecanismos complexos da amizade feminina ― o amor, a inveja, a “vontade de fazer mal”, o desejo ― e a melancolia que parece estar sempre à espreita compõem uma outra natureza igualmente violenta.Sempre dizem que determinada obra é uma carta de amor a algo ou alguém. Pança de burro é uma carta de amor escrita num papel decorado com flores e manchadinho de meleca de nariz, e as destinatárias são essas meninas “tão atrevidinhas”. Meninas que têm sujeira nos dentes, que sentem “uma tristeza como uma martelada”. Que “esfregam a perereca pelos cantos”. E que juntas, sempre juntas, enfrentam qualquer perigo, saem vivas de qualquer vulcão.
Quando saímos da porta de dona Carmen, um verme percorreu a minha garganta. Esse verme preto me dizia que eu já tinha, alguma vez, invejado Isora. Eu gostava da cor dos seus cabelos e dos seus braços. Gostava da sua letra. [...] E por que ela tinha ficado mocinha e porque tinha pelos na perereca. Isora tinha bastante pelo preto, duro e pontudo como o gramado falso das casas de veraneio. Eu invejava ela por causa do seu cartucho de jogos para o gameboi, pirateado por um primo seu de segundo grau que mexia com informática e morava em Santa Cruz. Invejava ela porque o cartucho tinha o jogo do Hamtaro e eu adorava o jogo do Hamtaro." p. 14-15
Esse livro toca num lugar muito específico da infância. Quem nunca teve aquele amigo ou amiga mais crescida, mas "espivitada", que parecia saber bem mais sobre o mundo do que a gente e que nos causava ao mesmo tempo inveja e admiração? Essa é Isora. Ao mesmo tempo, Isora demonstra ser carregada de problemas que por vezes confundem a narradora, que se sente mal por estar seguindo a liderança dela, pois mesmo discordando de algumas de suas atitudes, não consegue deixar de obedecê-la.
A escrita da autora é bastante visceral, e suas descrições por vezes escatológicas são as responsáveis por deixar o livro ainda mais profundo, e também ainda mais maluco, como falei lá em cima. Eu particularmente gostei muito do estilo de escrita da autora, de uma autenticidade incrível que me evocou sentimentos inéditos numa leitura.
Eu era isso, um pássaro desplumado e cheio de pulgas, um pássaro com o coração cansado e o bico aberto, o bico aberto à espera de Isora, das suas palavras, do cheiro de pão queimado das pontas dos seus cabelos, o preto e o podre que havia dentro das suas unhas rentes como a maré baixa de arrastando contra as rochas." p. 139
Pança de Burro foi o romance de estreia da Andrea Abreu, escritora das Ilhas Canárias de apenas 28 anos que com certeza tem muita coisa massa pra nos mostrar ainda. Amei ler sobre essa fase da infãncia que beira adolescência das personagens, pois essa é uma fase que geralmente marca as nossas vidas. Não vejo a hora de ler novos trabalhos dela, e recomendo demais essa leitura.
ISBN: 978-65-5921-221-7
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 185
Nota: 4/5⭐
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