Uma das coisas que mais me admira nas distopias é o fato de elas brincarem tanto com a realidade. Em Kentukis, da escritora argentina Samanta Schweblin, podemos encontrar elementos bem próximos dos já presentes em nossa cultura, como robôs e tamagotchis. Mas o caráter distópico se faz presente nesta sociedade ficcional, com condições de vida muito questionáveis e que traz diversas reflexões relevantes.
SINOPSE
O que aconteceria se fosse permitido às pessoas entrar na casa de desconhecidos e circular livremente por meio de um dispositivo tão adorável quanto um robô de pelúcia? Do que somos capazes quando guiados pelas regras incertas de um novo contrato social e sob a garantia do anonimato? Neste romance original e divertido, mas também aterrador, Samanta Schweblin, uma das principais vozes da literatura argentina atual, explora o lado inquietante da tecnologia e constrói um poderoso retrato da vida moderna. Solidão, afeto e generosidade, mas também oportunismo, infâmia e perversão, são alguns dos sentimentos que, atravessados pela virtualidade e pela paradoxal fragilidade da comunicação contemporânea, compõem este romance demasiado humano, verdadeira anatomia moral de nossos dias.
Nessa história não há protagonistas, mas sim uma série de personagens de contextos diferentes, que têm em comum o contato com Kentukis, robozinhos que permitem que um ser humano do outro lado de uma tela os controlem e vejam toda a vida de seus "amos". Os amos adquirem os Kentukis, em formato de bichinhos de pelúcia, para lhes fazer companhia, ou para atender um desejo de ter outro ser compartilhando do mesmo espaço. Por trás dos Kentukis há outra pessoa que controla seus movimentos, mas não é capaz de interagir verbalmente com o seu amo, a não ser por alguns chiados.
A busca por um Kentuki denota a necessidade de atenção que nós, seres humanos, possuímos. Também se relaciona com o conceito de sociedade de vigilância, numa linha de pensamento do tipo "se é pra ser vigiado, quero que pelo menos isso seja uma escolha". Por outro lado, a pessoa que busca ser um Kentuki parece assistir a um reality show, do tipo mais real possível, o que traz entretenimento e excitação aos que vivem essa experiência imersiva.
Isso era o que ela queria havia alguns anos, mudar de lugar, de corpo, ou de mundo, o que quer que pudesse acontecer." p. 17
O livro também traz um debate ético sobre o uso de tecnologias para relações sociais, pois nesse caso não se sabe, pelo menos não de início, quem está por traz dos olhos do Kentuki - assim como não dá pra ter certeza de quem está por trás de um perfil nas redes sociais. Ao mesmo tempo, os Kentukis parecem conseguir personificar a pessoa que o controla, chegando a gerar questionamentos sobre como devem ser tratados, considerando que ele representa um ser humano.
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Aqueles que compartilham a vida com um Kentuki parecem assumir, em certa medida, uma postura performática, escolhendo o que mostrar e o que não mostrar. Isso levanta outros questionamentos: os seres humanos prezam pela privacidade? Em que momento? Como é feita essa escolha e quais seriam os seus limites? A medida que a leitura avança essas indagações são respondidas de maneira diferente, de acordo com a vivência de cada núcleo de personagens.
No geral, achei que o conceito de Kentuki não me convenceu totalmente. Por mais que as discussões que esta obra traz sejam extremamente interessantes, não consegui me conectar com a ideia de as pessoas adquirirem arbitrariamente um bichinho de pelúcia que é controlado por uma pessoa anônima com quem você não é capaz de se comunicar livremente. Entretanto, não me surpreenderia que algo parecido passasse a existir. Os seres humanos tendem a se aficionar por coisas bem aleatórias.
Também senti que o excesso de personagens dificultou a criação de uma conexão com alguns deles. As trajetórias se misturam muito e não supriram minha curiosidade sobre cada situação específica, o que me faz pensar que uma opção mais "enxuta" poderia ter permitido um aprofundamento maior de alguns personagens. O que chama mais atenção sãos os diferentes laços criados entre os Kentukis e seus amos, que podem ser de carinho ou violência, de confidência ou de opressão. Se entender como essas relações se constroem é algo que atiça a sua curiosidade, recomendo muito a leitura deste livro.
ISBN: 978-65-89733-08-9
Editora: Fósforo
Nota: 3/5⭐
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